10.10.09

Enrique Vila-Matas (Com dois dentes a menos)









(Com dois dentes a menos...)






Eu estava a falar com uns norte-americanos absolutamente estúpidos quando de repente a minha mulher, na sua bebedeira extrema, deixou de rir, porque lhe pareceu que os meus maltrapilhos – foi o que disse – a olhavam mal.

“Quais maltrapilhos?”, perguntei desconcertado.

Os maltrapilhos eram, segundo ela, os estúpidos com quem eu falava, “o teu exército pessoal”, os últimos bêbados do bar.

Olhei-a e recordou-me o coronel Malraux e não consegui evitá-lo, escapou-se-me isto:
“Não estás a pensar que te quero fuzilar?”.

Nunca devia ter feito esta pergunta, nunca.

Denunciei que também uma certa fobia pernoitava em mim.

Seguiu-se uma refrega militar, eu no meu papel de papá Hemingway e ela no de Malraux.

Seguiu-se uma refrega terrível e eu perdi a guerra e os dentes, e também perdi a confiança em mim e a confiança nela.

À minha mulher, não a pude odiar mais quando no dia seguinte me disse que estava mais bonito.

“Com dois dentes a menos, já não te pareces tanto com Hemingway”, ironizou.



- ENRIQUE VILA-MATAS, Paris nunca se acaba, 68.


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