30.8.08

Ver (2)







Eugénio de Andrade (Num exemplar das Geórgicas)







Livros-1 (L.A.Cuenca)

Livros-2 (E.Andrade)






NUM EXEMPLAR DAS GEÓRGICAS





Os livros. A sua cálida,
terna, serena pele. Amorosa
companhia. Dispostos sempre
a partilhar o sol
das suas águas. Tão dóceis,
tão calados, tão leais.
Tão luminosos na sua
branca e vegetal e cerrada
melancolia. Amados
como nenhuns outros companheiros
da alma. Tão musicais
no fluvial e transbordante
ardor de cada dia.




Eugénio de Andrade



Fonte: O espelho de narciso


28.8.08

Pablo Neruda (O poço)










O POÇO





Afundas-te às vezes, cais
no teu fosso de silêncio,
em teu abismo de cólera orgulhosa
e só a custo consegues
regressar, mas ainda com vestígios
do que achaste
nas profundezas da tua existência.


Meu amor, o que encontras
no teu poço fechado?
Algas, lama, rochas?
Que vês de olhos cegos,
rancorosa e ferida?


Vida minha, no poço
onde cais não acharás
o que no alto guardo para ti:
um ramo de jasmins orvalhados,
um beijo mais fundo que o teu abismo.
(…)



Pablo Neruda


(Trad. Albano Martins)


Fontes: U. Chile (tudo+algo) / Fund. Neruda (tudo+algox2) / Los poetas (bio+16p) / EPDLP (bio+6p) / Portal de Poesia (linques) / Sololiteratura (+linques) / A media voz (54p) / Poesi.as (181p)




Antes, aqui: Para que me ouças / Poema 20 / Assustar um notário
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26.8.08

Bertolt Brecht (Há homens que lutam um dia)











Há homens que lutam um dia, e são bons;
Há outros que lutam um ano, e são melhores;
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons;
Porém há os que lutam toda a vida
Estes são os imprescindíveis




Bertolt Brecht




Fonte: As Tormentas
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Ral Brandão (Às vezes é um nada)





( Às vezes é um nada ...)



Ou a vida é um acto religioso - ou um acto estúpido e inútil.

Considero os meses mais felizes da minha vida aqueles em que eu e minha mulher fomos viver para uma aldeia remota.

Ainda hoje me penetra a solidão perfumada dos montes.

A casa não tinha vidros e à noite o silêncio doirado de estrelas entrava pelas janelas e desabava sobre nós…

Há horas em que as coisas nos contemplam e estão por um fio a comunicar connosco.

Às vezes é um nada, um momento de êxtase em que distintamente ouvimos os passos da vida caminhando.

O homem sozinho está mais perto de Deus e das coisas eternas.

Sabe-lhe melhor a vida, compreende melhor a morte.

Um pormenor que o interesse entranha-se-lhe na alma para sempre, como um perfume que nunca mais se esvai…

Ainda este ano o Maio foi tão quente que toda a noite se lavrou ao luar…



- RAUL BRANDÃO, Memórias, III, Balanço à vida.


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24.8.08

Olhar (31)








(Mira)

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Pedro Salinas (Fé minha)










FÉ MINHA




Não me fio da rosa
de papel,
tantas vezes a fiz
eu com estas mãos.
Nem me fio da outra,
da verdadeira,
filha do sol e do tempo,
a prometida do vento.
De ti que nunca te fiz,
de ti que ninguém te fez,
de ti me fio, redondo
seguro acaso.




Pedro Salinas


(Trad. A.M.)



Original: Corte na Aldeia (texto+foto)


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21.8.08

Um verso (45)



Um verso de Borges
(que vale por muitos):







No fundo do sonho estão os sonhos.
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Jorge Luis Borges
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Albano Martins (Nem sempre a neve)










Nem sempre a neve
cai do céu: às vezes,
explode numa flor.




O sonho
da lâmina: ser
ao mesmo tempo a bainha.



ALBANO MARTINS
Com as flores do salgueiro
(1995)









18.8.08

Adélia Prado (Moça na cama)






MOÇA NA CAMA




Papai tosse, dando aviso de si,
vem examinar as tramelas, uma a uma.

A cumeeira da casa é de peroba do campo,
posso dormir sossegada.

Mamãe vem me cobrir, tomo a bênção
e fujo atrás dos homens,
me contendo por usura, fazendo render o bom.

Se me tocar, desencadeio as chusmas,
os peixinhos cardumes.

Os topázios me ardem onde mamãe sabe,
por isso ela me diz com ciúmes:
dorme logo, que é tarde.

Sim, mamãe, já vou:
passear na praça sem ninguém me ralhar.

Adeus, que me cuido, vou campear nos becos,
moça de moços no bar,
violão e olhos difíceis de sair de mim.

Quando esta nossa cidade ressonar em neblina,
os moços marianos vão me esperar na matriz.

O céu é aqui, mamãe.

Que bom não ser livro inspirado
o catecismo da doutrina cristã,
posso adiar meus escrúpulos
e cavalgar no torpor dos monsenhores podados.

Posso sofrer amanhã a linda nódoa de vinho
das flores murchas no chão.

As fábricas têm os seus pátios,
os muros têm seu atrás.

No quartel são gentis comigo.

Não quero chá, minha mãe,
quero a mão do frei Crisóstomo me ungindo com óleo santo.

Da vida quero a paixão.

E quero escravos, sou lassa.

Com amor de zanga e momo quero minha cama de catre,
o santo anjo do Senhor,
meu zeloso guardador.

Mas descansa, que ele é eunuco, mamãe.




Adélia Prado




Fonte: Casa do Bruxo
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Silêncio










Silêncio-1 (Eugénio A.)


Silêncio-2 (M.Quintana)


Silêncio-3 (Andrés Eloy)


Silêncio-4 (A.Mattos)


Silêncio-5 (David M.F.)



Silêncio-7 (M.Quintana)


Silêncio-8 (E.Diego)


Silêncio-9 (cummings)


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16.8.08

António Ramos Rosa (A coisa amada)











A COISA AMADA





Dá-me o sangue das tuas ancas, dá-me o sangue
dos teus seios e o jardim do teu sexo.
Eu quero nascer
pela forma errante da respiração igual,
pelas bocas que através das nuvens comunicam.
Um desejo absoluto circula em todo o espaço.
Eu quero-te porque tu és a coisa amada
em que me transformo no flanco das palavras.
De uma odorífera fenda avermelhada,
em linhas irisadas, entre verdes cristais,
sobes, soberanamente escandalosa.



ANTÓNIO RAMOS ROSA
O Não e o Sim (1990)

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Ver (1)









(New York)

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"Ver" (Antologia de fotos de autoria alheia, indicada, mesmo que encoberta)

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6.8.08

José Fernandes Fafe (Jardins suspensos)










OS NOSSOS JARDINS SUSPENSOS








Os nossos jardins suspensos
são estas mulheres:




Carregam à cabeça
cestos densos de lírios,
maravilhas, malmequeres…





José Fernandes Fafe

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Consultar: DGLB (bio+biblio)


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3.8.08

Raul Brandão (Junqueiro)






(Junqueiro…)



Tenho conhecido em toda a minha vida dois ou três santos e alguns homens superiores.

Nunca vi mágico da força de Junqueiro.

Homem extraordinário! Engenho extraordinário!

Às vezes Deus fala pela sua boca; outras - quando menos se espera - é o Diabo fosforescente e sarcástico…

Sempre que o encontro fico atónito.

Tudo nele me deslumbra: o monólogo preparado, o dito repentino, a vida irreal que ele cria e produz ao lado da vida - e maior que a vida - a sua prodigiosa concepção do universo.

Foi sempre assim - foi sempre imprevisto.

Conheci-o profeta, com um fato velho, a pregar na Praça, e já o encontrei no Amieiro a discutir o talhe dum smoking.

Vi-o também muitas vezes deixar um homem em evidência, para acompanhar um poeta desconhecido e pobre.

Grande génio que só na política - era de prever - falhou quanto se pode falhar!




- RAUL BRANDÃO, Memórias, II, Os últimos anos de Junqueiro.


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1.8.08

Olhar (30)











Bustarenga
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(Montemuro)
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Mário de Sá Carneiro (Caranguejola)







CARANGUEJOLA





- Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!



Lã vermelha, leito fofo. Tudo bem calafetado...
Nenhum livro, nenhum livro à cabeceira -
Façam apenas com que eu tenha sempre a meu lado
Bolos de ovos e uma garrafa de Madeira.



Não, não estou para mais - não quero mesmo brinquedos.
Pra quê? Até se mos dessem não saberia brincar...
Que querem fazer de mim com este enleios e medos?
Não fui feito pra festas. Larguem-me! Deixem-me sossegar...



Noite sempre plo meu quarto. As cortinas corridas,
E eu aninhado a dormir, bem quentinho - que amor...
Sim: ficar sempre na cama, nunca mexer, criar bolor -
Plo menos era o sossego completo... História! Era a melhor das vidas...



Se me doem os pés e não sei andar direito,
Pra que hei-de teimar em ir para as salas, de Lord?
- Vamos, que a minha vida por uma vez se acorde
Com o meu corpo, e se resigne a não ter jeito...



De que me vale sair, se me constipo logo?
E quem posso eu esperar, com a minha delicadeza?
Deixa-te de ilusões, Mário! Bom édredon, bom fogo -
E não penses no resto. É já bastante, com franqueza...



Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Co'a breca! Levem-me prà enfermaria! -
Isto é, pra um quarto particular que o meu Pai pagará.



Justo. Um quarto de hospital, higiénico, todo branco, moderno e tranquilo;
Em Paris, é preferível - por causa da legenda...
Daqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda -
E depois estar maluquinho em Paris fica bem, tem certo estilo...



Quanto a ti, meu amor, podes vir às quintas-feiras,
Se quiseres ser gentil, perguntar como eu estou.
Agora, no meu quarto é que tu não entras, mesmo com as melhores maneiras:
Nada a fazer, minha rica. O menino dorme. Tudo o mais acabou.






Mário de Sá Carneiro

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