31.7.07

António Osório (A um mirto)









A UM MIRTO








Nascido antes de Cristo
Uma vez mais floriu
o velho e agora jovem mirto.
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Junto ao poço as suas fundas raízes
e o mesmo vivo, sempre generoso
aroma das folhas; o tronco
torturado por nodosas chagas,
cavernas, golpeado de musgo e cobre,
mas com baixos, com tenazes rebentos.
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Quantos ali perdeste, quantos
se amaram à tua sombra?
Alguém como eu acaso te beijou?
Quantos passos em volta? Quanta chuva
desejou o Romano que para aqui te trouxe?
E quantas exalações da vida assististe
como muda testemunha, ó corpo mediterrâneo
sobrevivente a tantos tantos deuses mortos?



António Osório






Outras: DGLB (bio+ antologia) / As Tormentas (bio+6p) / Lídia Aparício (16p) / nEscritas (4p)
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Olhar (9)







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Albergaria da Serra

(Serra da Freita)

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Um verso (37)










Um verso de Sena
(e já não é o primeiro):









A carne espera, incerta, mas tranquila.





[Corte-na-aldeia]

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29.7.07

Pedro Mexia (Uma pequenina luz)


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Luzinha-1 (Jorge de Sena)
 

Luzinha-2 (Assis Pacheco)
 

Luzinha-3 (Aquilino Ribeiro)

 

Luzinha-4 (Pedro Mexia)...


 

UMA PEQUENINA LUZ


Bruxuleante, como a luz do Sena,
a esperança é uma vela de emergência,
coto colorido, quando a electricidade
falha. Lembrar a vela, procurá-la,
depois os fósforos, o trabalho patético
de a acender, reacender, firmar a base
e depois cinco segundos bruxuleantes,
a esperança, e a luz (eléctrica) voltou


PEDRO MEXIA
Senhor Fantasma
(2007)


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26.7.07

Ferreira Gullar (Filhos)












FILHOS







Daqui escutei
quando eles
chegaram rindo
e correndo
entraram
na sala
e logo
invadiram também
o escritório
(onde eu trabalhava)
num alvoroço
e rindo e correndo
se foram
com sua alegria



se foram



Só então
me perguntei
por que
não lhes dera
maior
atenção
se há tantos
e tantos
anos
não os via crianças



já que
agora
estão os três
com mais
de trinta anos.




Ferreira Gullar





Fonte: Portal Literal


Antes, aqui: Meu pai

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24.7.07

Amalia Bautista (Negra bílis)





NEGRA BILIS
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Hace meses que vivo rodeada
de una sustancia negra y pegajosa
que ha invadido mi casa. Las paredes,
el suelo, las ventanas y los muebles,
la comida, los libros y la ropa,
las teclas del ordenador, las plantas,
el teléfono…Todo está impregnado
de esta brea, la misma que respiro,
la que me está matando poco a poco.
Dicen que los dichosos y los necios
llaman melancolía a esta basura
que pudre el corazón y asfixia el alma.



Amalia Bautista
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Há meses que vivo rodeada
por uma substância negra e pegajosa
que invadiu a minha casa. As paredes,
o chão, as janelas e os móveis,
a comida, os livros e a roupa,
o teclado do computador, as plantas,
o telefone… Está tudo impregnado
com esta pez escura, a mesma que respiro
e que me mata pouco a pouco.
Dizem que os venturosos e os néscios
chamam melancolia a esta porcaria
que apodrece o coração e asfixia a alma.

(Trad. at)
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22.7.07

Jaime Sabines (Se sobrevives...)





SI SOBREVIVES, SI PERSISTES, CANTA,
sueña, emborráchate.
Es el tiempo del frío: ama,
apresúrate. El viento de las horas
barre las calles, los caminos.
Los árboles esperan: tú no esperes,
éste es el tiempo de vivir, el único.


Jaime Sabines






SE SOBREVIVES, SE PERSISTES, CANTA,
sonha, embebeda-te.
É o tempo do frio: ama,
despacha-te. O vento das horas
varre as ruas, os caminhos.
As árvores esperam: tu não esperes,
este é o tempo de viver, o único.


(Trad. A. M.)





18.7.07

Gabriel Celaya (Cuéntame cómo vives)












CUÉNTAME CÓMO VIVES, CÓMO VAS MURIENDO




Cuéntame cómo vives;
dime sencillamente cómo pasan tus días,
tus lentísimos odios, tus pólvoras alegres
y las confusas olas que te llevan perdido
en la cambiante espuma de un blancor imprevisto.


Cuéntame cómo vives;
ven a mí, cara a cara;
dime tus mentiras (las mías son peores),
tus resentimientos (yo también los padezco),
y ese estúpido orgullo (puedo comprenderte).


Cuéntame cómo mueres;
nada tuyo es secreto:
la náusea del vacío (o el placer, es lo mismo);
la locura imprevista de algún instante vivo;
la esperanza que ahonda tercamente el vacío.


Cuéntame cómo mueres;
cómo renuncias -sabio-,
cómo -frívolo- brillas de puro fugitivo,
cómo acabas en nada
y me enseñas, es claro, a quedarme tranquilo.



GABRIEL CELAYA
Tranquilamente hablando
(1945)




Fonte: A-media-voz



Outras: EPDLP / Portal de Poesia (linques) / Inst. Cervantes (tudo+algo) / Gabriel Celaya



Antes, aqui: Biografia (com sinopse) / Conselho de morte / Às vezes imagino que estou apaixonado

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Coitado do Jorge (39)





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DISCURSO DO FILHO-DA-MÃE





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O filho-da-mãe chegava e declarava-se, sempre:
“Perigosamente heterossexual”.


E regougava, para dentro:
“Quem te avisa, teu amigo é”.



(Dedicado a
Alberto Pimenta)
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16.7.07

Olhar (8)



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Nupi
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Eugénio de Andrade (Três ou quatro sílabas)





TRÊS OU QUATRO SÍLABAS



 
Neste país
onde se morre de coração inacabado
deixarei apenas três ou quatro sílabas
de cal viva junto à água.

 
É só o que me resta
e o bosque inocente do teu peito
meu tresloucado e doce e frágil
pássaro das areias apagadas.

 
Que estranho ofício o meu
procurar rente ao chão
uma folha entre a poeira e o sono
húmida ainda do primeiro sol.



 
EUGÉNIO DE ANDRADE
Véspera da Água
(1973)

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13.7.07

Aquilino Ribeiro (Noite de lua)





(Noite de lua…)




Seria obra de dez horas e caía uma geada muito forte que sobradava os agros e metia pela terra dentro suas agulhas de gelo. No céu, adiante de cirros, ia de jornada uma lua bochechuda. E tão estanhada, que os barrocais luziam até muito para riba do povo, donde as águas manavam cantando, glau! glau!

Os longes esfarelavam-se num luaceiro grisalho, como de moinha ao vento; mas, a todo o largo da mirada, a terra descobria-se com os mouchões das leiras a reluzir prateados ao luar e os regos coalhados de tinta negra. Nas leiras onduladas de morro para morro, o centeal dormia debaixo do codo, a meio as pedras intonsas e impressionantes, como cabeças mortas saindo de baixo dum lençol. As giestas projectavam uma sombra muito escura, o que levou a notar que a sombra que o seu vulto também projectava era tão retinta e desengonçada como se levasse um fantasma à mão direita. Não se enxergava vivalma, nem de homem, nem de bicho, nem de ser nado que fosse. Mas, pela lua que caminhava sempre, o sete-estrelo muito rútilo, a rija imobilidade da planície, sentia-se a terra presa a amarras que não quebram nem se rendem.



- AQUILINO RIBEIRO, Terras do Demo, ed. 1963, pp. 96 e 99.


Um verso (36)






Um verso de Hélène Monette
(apanhado na rede):





Senhor, o amor é uma coisa que mete medo.


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11.7.07

Fernando Assis Pacheco (Lumiar, Lisboa)





(O Assis, eu conheci-o...)





LUMIAR, LISBOA: UM MELRO NA RAMPA DA TELEVISÃO





Um melro na rampa da Televisão
um melro cantava e eu que chegava
parei-me a ouvi-lo com aqueles garganteios à Elisabeth Schwarzkopf
invejoso daqueles agudos sustentados entre folhas
e com o sol do Verão a dar na tromba
como uma pedra




eu ou seja este bípede vestindo camisa Lacoste de crocodilo ao peito
envolto em águas tristes herdadas dos quatro primeiros impérios
que prefiro as salas de trás nas casas de trás das cidades
que estão para lá dos rios e das matas de medronheiros
onde ainda tento acender um ou outro amigo
com os fusíveis trazidos queimados de África
incapaz por todas as razões expostas
de colar suficientemente à melopeia do verso heróico




um melro cantava e eu que parava
pego na esferográfica rasgo metade de um sobrescrito
cedo à «inspiração» para anotar o dístico há mais de um ano
tentando a sua vez de ser um fecho aceitável

o mal de muita gente é que anda aos gritos
o mal de alguns de nós é já a esgana





FERNANDO ASSIS PACHECO
Memórias do Contencioso, 1980



8.7.07

José Emílio Pacheco (Alta traição)







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ALTA TRAICION









No amo mi Patria.
Su fulgor abstracto es inasible.
Pero (aunque suene mal) daría la vida
por diez lugares suyos, cierta gente,
puertos, bosques de pinos, fortalezas,
una ciudad deshecha, gris, monstruosa,
varias figuras de su historia,
montañas
- y tres o cuatro ríos.



José Emílio Pacheco






Minha Pátria, não a amo. É impalpável
o seu fulgor abstracto.
Mas (mesmo parecendo mal) daria a vida
por dez lugares dela, certas pessoas,
portos, pinhais, fortalezas,
uma cidade desfeita, cinzenta, horrível,
várias figuras da história,
montanhas
- e três ou quatro rios.


(Trad. A.M.)
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Fonte: EPDLP




Outras: A-media-voz (bio+30p)/ Solo-Literatura (linques) / Portal de Poesia (linques)
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Adélia Prado (Impressionista)





IMPRESSIONISTA






Uma ocasião,
meu pai pintou a casa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo morámos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.



Adélia Prado


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5.7.07

Cecília Meireles (Cântico XIII)







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CÂNTICO XIII






Renova-te.
Renasce em ti mesmo.
Multiplica os teus olhos, para verem mais.
Multiplica os teus braços para semeares tudo.
Destrói os olhos que tiverem visto.
Cria outros, para as visões novas.
Destrói os braços que tiverem semeado,
Para se esquecerem de colher.
Sê sempre o mesmo.
Sempre outro. Mas sempre alto.
Sempre longe.
E dentro de tudo.



Cecília Meireles



>>  Camerata Antiqua de Curitiba (Dimitri Cervo)
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Outras: Mulheres-que-amo (22p) / Projecto Releituras (bio-biblio+verso+prosa) / Jornal de Poesia (37p+bio-bilio+critica) / Casa do Bruxo (78p)

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Antes, aqui: Cântico IV / Um verso / Retrato (com sinopse)
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Coitado do Jorge (38)





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QUINHENTOS EUROS




€ 500,00
Quinhentos, foi o mais caro
que vendi a minha noite.
(Mas a ingrata não me pagou…)


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2.7.07

Jaime Sabines (Espero curarme de ti...)





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ESPERO CURARME DE TI en unos días.
Debo dejar de fumarte, de beberte, de pensarte.
Es posible.
Siguiendo las prescripciones de la moral en turno.
Me receto tiempo, abstinencia, soledad.




Te parece bien que te quiera nada más una semana?
No es mucho, ni es poco, es bastante.
En una semana se puede reunir todas las palabras de amor
que se han pronunciado sobre la tierra
y se les puede prender fuego.
Te voy a calentar con esa hoguera del amor quemado.
Y también el silencio.
Porque las mejores palabras del amor
están entre dos gentes que no se dicen nada.




Hay que quemar también ese otro lenguaje
lateral y subversivo del que ama.
(Tú sabes cómo te digo que te quiero cuando digo:
“que calor hace”, “dame agua”, “sabes manejar?”, “se hizo de noche”.
Entre las gentes, a un lado de tus gentes y las mías, te he dicho
“ya es tarde”, y tú sabías que decía “te quiero”.)




Una semana más para reunir todo el amor del tiempo.
Para dártelo.
Para que hagas con él lo que tú quieras:
guardarlo, acariciarlo, tirarlo a la basura.
No sirve, es cierto.
Sólo quiero una semana para entender las cosas.
Porque esto es muy parecido a estar saliendo
de un manicomio para entrar a un panteón.



Jaime Sabines

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