31.8.06

Coitado do Jorge (20)







(Sábia, essa Amalia…)



Todos precisamos que nos amem.
Porém, alguns infelizes,
não sabemos viver para outra coisa.

Amalia Bautista


[Natureza-do-mal]



.

Fernando Assis Pacheco (Kleine nachtmusik)







KLEINE NACHTMUSIK




Enquanto a minha filha Ana estuda geometria descritiva
para ver se tem mesmo bossa de arquitecta estou eu
babando a barbilha à máquina como um boi de lavoura
que no fim de tudo o matadouro esperasse


sugiro que vá deitar-se apague a luz pare
de uma vez mas ela é tão obstinada como eu
e até projectar não sei que miudeza ouvirei
como raspa raspa com a caneta de aparo


ditosos pais que nas filhas se revêem pudesse este
nutrir-se de boas quentes domésticas palavras
do género ah ganda Fnando já chega olha o coirão
quando a verdade é que aguento um semieixo partido


Ana são horas no meu relógio com lampadazinha dentro
e depois isto dos versos
passados anos já não passam de enganos
manda-me lá embora queres que te aqueça leite?



Fernando Assis Pacheco

.

Sophia (São gostos)






SÃO GOSTOS




Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.


Para ti eu criarei um dia puro
livre como o vento e repetido
como o florir das ondas ordenadas.



Sophia de Mello Breyner Andresen



BIOGRAFIA
Sophia de Mello Breyner Andresen foi, sem sombra de dúvida, um dos mais emblemáticos poetas portugueses contemporâneos, pela originalidade sem precedentes da sua expressão formal – um nome que se transformou, em Portugal, num sinónimo de poesia pura e, ao mesmo tempo, numa espécie de musa da própria poesia.
Sophia nasceu no Porto, em 1919, no seio de uma família aristocrática de ascendência dinamarquesa.
A sua infância e adolescência decorrem entre o Porto e Lisboa, onde cursou Filologia Clássica. Após o casamento com o advogado e jornalista Francisco Sousa Tavares, fixa-se em Lisboa, passando a dividir a sua actividade entre a poesia e o activismo cívico contra o regime de Salazar. A sua poesia ergue-se então como uma espécie de "voz de liberdade".
Profundamente mediterrânica na sua tonalidade, a linguagem poética de Sophia de Mello Breyner denota, para além da sólida cultura clássica da autora e da sua paixão pela cultura grega, a pureza e a transparência do signo na relação da linguagem com as coisas, a luminosidade de um mundo onde intelecto e ritmo se harmonizam na forma melódica, perfeita, do poema.
A sua expressão profundamente única e pessoal falam de um desejo de comunhão com a essência do real, de uma tentativa humilde e solene de ser veículo para a revelação da secreta beleza das coisas.
O universo poético de Sophia de Mello Breyner está assente sobre o sonho jamais perdido de um mundo em justo equilíbrio como seria o mundo dos deuses gregos na antiguidade clássica, um mundo inundado pela luz e pelo mar, em que tudo se conjuga numa ambiência extremamente íntima e quase mágica.
Luz, verticalidade e magia estão, aliás, sempre presentes na obra de Sophia: quer na obra poética quer na importante obra para crianças que, inicialmente destinada aos seus cinco filhos, rapidamente se transformou num clássico da literatura infantil em Portugal, marcando sucessivas gerações de jovens leitores com títulos como O Rapaz de Bronze, A Fada Oriana ou A Menina do Mar.
Sophia foi ainda tradutora para português de obras de Claudel, Dante, Shakespeare e Eurípedes, tendo sido condecorada pelo governo italiano pela sua tradução de O Purgatório.
Acima de tudo, Sophia é ainda a minha própria musa, aquela cuja obra me guia e me sustenta através de todos os meus percursos interiores, como uma espécie de fio de Ariadne através do labirinto do Minotauro.
Sophia de Mello Breyner Andresen morreu a 2-Julho-2004.



Fonte (Bio): Lugar das palavras


Outros lugares: Porto de Abrigo (+ 40 poemas) / As Tormentas (53 poemas + Bio + Fotos) / Jornal de Poesia (8 poemas e mais, com foto) / Lugar das palavras (80 poemas + Bio) / Poesia - TriploV (Poemas + Crítica e mais + Foto) / Poesia e prosa (45 poemas) / nEscritas (Homenagem) / Um-buraco-na-sombra (Bio +37 poemas) / Centro V. Camões (nota Clara Rocha) / Palavras d'Ouro (Bio + 15 poemas)

.

28.8.06

Um verso (18)


Um verso de Dámaso Alonso
(com sequência, pode?):




“O vento é um cão vadio
(a lamber a noite imensa)”.









.
.

Corpo presente (26)






VOZ FEMININA




Voz de seda,
roçagante,
barbante fatal
no meu pescoço
- Às vezes, de arame farpado…


.
.

António Ramos Rosa (Uma voz na pedra)






UMA VOZ NA PEDRA




Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha ebriedade é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.



António Ramos Rosa


.



22.8.06

Amalia Bautista (Enigma)











ENIGMA








El primero dia que salí contigo
dijiste que era estraño tu trabajo.
Nada más. Sin embargo, yo sentía
que mi piel se rasgaba hecha jirones
cada vez que tus manos me rozaban,
y que tus ojos eran como aceros
que hacían que los míos me dolieram.
En adelante siempre fue lo mismo:
Tú te enorgullecías de tu arte,
más sutil y directo cada día,
y yo no comprendía nunca nada.
Ahora lo sé. Conozco ya tu ofício:
Lanzador de cuchillos. Has lanzado
contra mi corazón el más certero.


Amalia Bautista






No primeiro dia que saí contigo
disseste que o teu trabalho que era estranho.
Mais nada. Todavia, eu sentia
a pele a rasgar-se como trapos
de cada vez que me tocavas com a mão.
E os teus olhos pareciam-me punhais
a fazer-me doer os meus.
Daí para a frente foi sempre a mesma coisa:
tu orgulhavas-te da tua arte,
mais subtil e directo em cada dia
e eu nunca percebia nada.
Mas agora sei. Já conheço o teu ofício:
Atirador de facas. A mais certeira
atiraste-ma ao coração.

(Trad. A. M.)



BIOGRAFIA
Amalia Bautista nasceu em Madrid em 1962.
Jornalista de formação, trabalha como redactora no gabinete de Imprensa do Conselho Superior de Investigações Científicas.
Publicou La mujer de Lot y otros poemas (Llama de amor viva, Málaga, 1995), Cárcel de amor (Renacimiento, Sevilha, 1988), Cuéntamelo otra vez (La valeta, Granada, 1999), La casa de la niebla. Antología 1985-2001 (Universitat de les Illes Baleares, 2002), Estoy ausente (Pré-Textos, Valência, 2004), Pecados, com Alberto Porlan (El Gaviero, Almería, 2005) e Tres deseos, Antologia) (Renacimiento, Sevilla, 2006).
Podemos encontrar poemas seus nas seguintes antologias: Una generación para Litoral (Litoral, Málaga, 1988), Poesia espanhola de agora (Relógio D’água, Lisboa, 1997), Ellas tienen la palabra (Hiperión, Madrid, 1997), Raiz de amor (Alfaguara, Madrid, 1999), La generación del 99 (Nobel, Oviedo, 1999) e Trípticos Espanhóis-3º, (Relógio D’água, Lisboa, 2004).



Fontes: Bio+foto / Mais poemas

.

18.8.06

Coitado do Jorge (19)





(Sábio, esse Perret…
ainda que pouco original)





Um desgosto de amor só dura
até ao próximo amor…



Pierre Perret


[Corte-na-aldeia ]
.

Cesário Verde (De tarde)






DE TARDE





Naquele pic-nic de burguesas,
Houve uma coisa simplesmente bela,
E que, sem ter história nem grandezas,
Em todo o caso dava uma aguarela.


Foi quando tu, descendo do burrico,
Foste colher, sem imposturas tolas,
A um granzoal azul de grão-de-bico
Um ramalhete rubro de papoulas.


Pouco depois, em cima duns penhascos,
Nós acampámos, inda o sol se via;
E houve talhadas de melão, damascos,
E pão de ló molhado em malvasia.


Mas, todo púrpuro, a sair da renda
Dos teus dois seios como duas rolas,
Era o supremo encanto da merenda
O ramalhete rubro das papoulas.


Cesário Verde



Outros lugares: Palavras d'Ouro / Projecto Vercial / As Tormentas (19 poemas) / Arlindo Correia / Jornal de Poesia / Porto de abrigo / nEscritas

.

15.8.06

Cristóvão de Aguiar (A respeito dos machos)









A respeito dos machos, tanto arrocho não havia, não-senhor.

Sempre se alcançava mais uma aberta — um home é um home, tem carta branca — isto apesar de os pais dalgum tempo serem mesmo muito téstos no tocante à hora do recolher.

As Trindades eram sagradas, mas havia sempre maneira de uma pessoa se escapulir ao arrocho da cilha.

Os que, numa comparação, iam dar o dia pra o Sul não tinham hora certa de chegar, a viagem era mais comprida que uma missa cantada e em chegando um home ao Canto da Fonte, as mais das vezes já noite fechada, metia cobiça ficar ali uma nica à conversa, ou escutando um caso engraçado da boca do senhor Manolinho da Ponte, sempre atarraxado de abafadinhos, mas muito divertido e cheio de piihéria, ou intance, se o tempo ardava lagoeiro, ia-se emborcar um calzins de cachaça da terra, por via de não se apanhar alguma resfriage.

Uma vez por outra, se acaso havia alguma serrilha no fundo da algibeira, mercava-se seis vinténs de favas assadas, nesse tempo dava uma mancheia, os pinotes é que eram mais caros e não se lhes podia chegar, só uma vez por festa é que se mercava uma serrilha deles pra se ir trincando pela tarde de domingo adiante.



- CRISTÓVÃO DE AGUIAR, A semente e a seiva, cap. XXIII, abertura, da trilogia Raiz Comovida.

.

11.8.06

Fernando Assis Pacheco (Chula das fogueiras-2)






CHULA DAS FOGUEIRAS-2



Amor amor meu big amor
eu dizia shazam e tu não me ligavas


pus Mandrake a seguir-te hábil nos truques
e tu não me ligavas


em qualquer planeta verde e avançadíssimo
tu não me ligavas


estendi o meu braço Homem de Borracha até S. Martinho do Bispo
e tu não me ligavas ponta nenhuma


tu querias era casar na Sé Nova
branquingénua abusar do meu livre alvedrio


fiz-te pois um manguito do tamanho dum choupo
e cá estou pai de filhos um bocado estragado


mas não por tua causa que já não existes
ó sombra de sombra à esquina da farmácia



Fernando Assis Pacheco

.

10.8.06

Al Berto (Ofício de amar)







OFÍCIO DE AMAR




já não necessito de ti
tenho a companhia nocturna dos animais e a peste
tenho o grão doente das cidades erguidas no princípio doutras galáxias, e o remorso


um dia pressenti a música estelar das pedras, abandonei-me ao silêncio
é lentíssimo este amor progredindo com o bater do coração
não, não preciso mais de mim
possuo a doença dos espaços incomensuráveis
e os secretos poços dos nómadas


ascendo ao conhecimento pleno do meu deserto
deixei de estar disponível, perdoa-me
se cultivo regularmente a saudade do meu próprio corpo


Al Berto




BIOGRAFIA

Nasceu em Coimbra a 11 de Janeiro de 1948 e morreu em Lisboa, a 13 de Junho de 1997. Poeta e editor. De seu verdadeiro nome Alberto Raposo Pidwell Tavares, começou a publicar poesia no final da década de 70 (À Procura do Vento num Jardim d'Agosto, 1977), sendo actualmente considerado um dos mais importantes poetas da sua geração e um dos mais originais, possuidor de um universo de características muito próprias no panorama da poesia portuguesa da actualidade. De facto, cultivando uma poesia fortemente lírica e de pendor confessional, como aliás é patente no título, de 1985, Uma Existência de Papel, Al Berto tem vindo a construir um universo poético que foi já considerado "um dos mais melancólicos da nossa poesia recente" por Fernando Pinto do Amaral.
Espelhando vivências de uma juventude errante, em deambulações por uma certa Europa marginal e underground - que o poeta cumpriu vivendo, entre o final da década de sessenta e a década de 70, numa comunidade urbana de Bruxelas e nos bas-fonds de Paris e Barcelona -oscilando entre o excesso da experiência emocional e física e uma melancolia desolada e solitária, a obra de Al Berto reflecte a presença imaginária de Genet e Rimbaud na paixão urgente e dolorosa, na transgressão sexual, na vertigem auto destrutiva, na solidão, na experiência do deserto e da morte.
Ao situar o seu discurso poético a meio caminho entre a extrema lucidez e a ternura, a exposição narcísica e a assunção da literatura como ficção inseparável da vivência, Al Berto tem sido considerado, na tonalidade crepuscular que envolve toda a sua obra, uma voz "entre a subjectividade romântica e a impessoalidade modernista" (Hélder Moura Pereira), num território já pertencente ao domínio da pós-modernidade.


Fonte (Biografia)

Fonte (Poema) - + 267 poemas

Mais poemas: Lídia Aparício / Poesia-e-prosa / nEscritas / Bibliomanias / Wikipedia/ Palavras d'Ouro

.

7.8.06

Jaime Sabines (Quando quiseres morrer)






Cuando tengas ganas de morirte
esconde la cabeza bajo la almohada
y cuenta cuatro mil borregos.
Quédate dos días sin comer
y veras qué hermosa es la vida:
carne, frijoles, pan.
Quédate sin mujer: verás.
Cuando tengas ganas de morirte
no alborotes tanto: muérete
y ya.



Jaime Sabines






Quando quiseres morrer
mete a cabeça sob a travesseira
e conta quatro mil carneiros.
Fica dois dias sem comer
e verás que linda que é a vida:
carnuça, os feijões, o pãozinho.
Priva-te de mulher: vais ver.
Quando quiseres morrer
não te alvoroces tanto: morre-te
e pronto.


(Trad. A.M.)


.

Coitado do Jorge (18)






(Sábio, esse Borges…)




Houve noites em que me julguei
tão seguro de poder esquecê-la,
que voluntariamente a recordava.




Jorge Luís Borges


[Corte na aldeia]

.