27.2.06

Rosana Acquaroni (Hay ventanas)




HAY VENTANAS QUE PUEDEN HABITARSE...




Hay ventanas que pueden habitarse
como se habita una ciudad, durante años.
Hay escenas que encienden una vida
y vidas
que encienden una muerte mientras duran.


Tan sólo fue un instante.
Después
aquella imagen fue quedándose atrás
y tuve la certeza
de que ella misma había consentido en su muerte.


El sacrificio es siempre una forma de venganza.
En la noche anterior
él le había prometido llevarla a ver el mar.


La ventanilla de un tren
puede llegar a contener el mundo en un instante.


Después de golpearla
ella cayó de rodillas ante él,
mientras él la miraba
y su mano homicida se abría sin querer
y la piedra sangraba,
se dejaba caer,
se despeñaba talud abajo.


Me pregunto cómo se conocieron.
En dónde enamoraron.
Si ella sabía coser.
Si habría criaturas esperándola.


No pude decir nada.
Asistir al fragmento de la vida de otros.
Sentir la medianía de un cuerpo malogrado.
Ver cómo me alejaba
y mi ojos sin tiempo
querían estirarse, detenerse,
comprender.


El tren seguía su curso.


(Un hombre solo que planea una muerte en campo abierto. Alguien que
casualmente miraba en ese instante por la ventanilla de un tren y lo contempla.
Eso es todo.)



ROSANA ACQUARONI
Lámparas de arena
(2000)



Biografía
Poeta española nacida en Madrid en 1964.
Licenciada en Filología Hispánica por la Universidad Autónoma de Madrid, trabaja como profesora de español para extranjeros en la Universidad Complutense de Madrid desde 1992.
Es autora de materiales didácticos para la enseñanza de ELE, ha impartido cursos de formación de ELE en Inglaterra, Estados Unidos y Túnez, y es profesora del Máster de formación de profesores de ELE de la Universidad Complutense de Madrid.
Entre los reconocimientos obtenidos, se destacan: el Accésit del Premio Adonais de Poesía 1987 con el libro «Del Mar bajo los puentes», la Ayuda para la Creación Literaria del Ministerio de Cultura para su libro «El Jardín Navegable» y el Premio de Poesía Cáceres Patrimonio Mundial 1995 con el libro «Cartografía sin mundo».
Su último libro, «Lámparas de arena» fue publicado por la Comunidad de Madrid y la Fundación Gerardo Diego.
Sus poemas han sido traducidos al francés, al alemán y al árabe y aparecen recogidos en varias antologías.


Fonte/Mais poemas

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Coitado do Jorge (8)






PODES VIR





- "Jorge, podes vir, mamã enfim morta"...

Isto é comigo. Só pode...


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25.2.06

Cecília Meireles (Cântico-IV)





CÂNTICO-IV




Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.



Cecília Meireles

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Corpo presente (6)






OLHOS





Ébrio, sempre,
do vinho dos teus olhos.

#



Ainda não sei de cor os teus olhos
(Mas poderia alguém decorar
as obras todas
da biblioteca de Alexandria?).

#



Matadores?
- É dizer pouco ainda desses olhos
“altamente perigosos”.

#



Olhos?
Aquilo não são olhos,
são dois poços de malícia.




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24.2.06

Um verso (6)






Um verso de Cesário
(um verso apenas):




“E enfim hás-de morrer na forca dos meus braços”.



Cesário Verde

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Corpo presente (5)






O VISO DA MEMÓRIA







Sai-me das noites para os dias,
esta figura erótica,
silhueta branca e esguia,
rompendo o viso da memória…



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Ruy Belo (Em legítima defesa)





EM LEGÍTIMA DEFESA




Sei hoje que ninguém antes de ti
morreu profundamente para mim
Aos outros foi possível ocultá-los
na sua irredutível posição horizontal
sob a capa da terra maternal
Choramo-los imóveis e voltamos
à nossa irrequieta condição de vivos
Arrumamos os mortos e ungimo-los
São uma instituição que respeitamos
e às vezes lembramos celebramos
nos fatos que envergamos de propósito
nas lágrimas nos gestos nas gravatas
com flores e nas datas num horário
que apenas os mate o estritamente necessário
mas decerto de acordo com um prévio plano
tu não só me mataste como destruíste
as ruas os lugares onde cruzámos
os nossos olhos feitos para ver
não tanto as coisas como o nosso próprio ser
A cidade é a mesma e no entanto
há portas que não posso atravessar
sítios que me seria doloroso outra vez visitar
onde mais viva que antes tenho medo de encontrar-te
Morreste mais que todos os meus mortos
pois esses arrumei-os festejei-os
enquanto a ti preciso de matar-te
dentro do coração continuamente
pois prossegues de pé sobre este solo
onde um por um perigo os meus fantasmas
e tu és o maior de todos eles
não suporto que nada haja mudado
que nem sequer o mais elementar dos rituais
pelo menos marcasse em tua vida o antes e o depois
forma rudimentar de morte e afinal morte
que por não teres morrido muito mais tenhas morrido
Se todos os demais morreram de uma morte de que vivo
tu matas-me não só rua por rua
nalguma qualquer esquina a qualquer hora
como coisa por coisa dessas coisas que subsistem
vivas mais que na vida vivas na imaginação
onde só afinal as coisas são
Ninguém morreu assim como morreste
pois se houvesse morrido tudo estava resolvido
Os outros estão mortos porque o estão
Só tu morreste tanto que não tens ressurreição
pois vives tanto em mim como em qualquer lugar
onde antes te encontrava e te possa encontrar
e ver-te vir como quem voa ao caminhar
Todos eram mortais e tu morreste e vives sempre mais



Ruy Belo



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20.2.06

Fernando Assis Pacheco (A lebre)

                               





A LEBRE




Para o favorito bater o seu máximo
corre a lebre umas quantas voltas
puxando pelo andamento até que
à hora conveniente sai da pista
sem um gesto um adeus o que se diz nada
e da bancada vêm gritos
porém são para o outro que esse sim
pode ficar na história
efémera que seja dos recordes


também eu tenho pernas
mas nunca tão possantes
e coração
mas o normal da espécie
encosto pois para deixar
passar o favorito: lá vai ele
veloz como uma seta


Lisboa, 28/29-IX-95



FERNANDO ASSIS PACHECO
Respiração Assistida



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Coitado do Jorge (7)






SMS MATINAL





Podia gostar de si mil anos...
Porque é que me dão tão poucos?




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19.2.06

Mário de Sá Carneiro (Fim)





FIM




Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!


Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza:
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro!...



Mário de Sá Carneiro


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Corpo presente (4)






PROGRAMA







Durar
durar sempre
(enquanto durar,
pelo menos)

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14.2.06

Gabriel Celaya (Conselho de morte)

                                         



CONSEJO MORTAL



Levanta tu edificio. Planta un árbol.
Combate si eres joven. Y haz el amor, ¡ah, siempre!
Mas no olvides al fin construir con tus triunfos
lo que más necesitas: Una tumba, un refugio.


Gabriel Celaya






Faz a tua casa. Planta uma árvore.
Combate, se és jovem. E faz amor, ah, sempre!
Mas não olvides no fim fazer com os teus triunfos
aquilo que mais precisas: Uma tumba, um refúgio.


(Trad. A.M.)

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Aquilino Ribeiro (O vento, que é um pincha-no-crivo)

                             



O vento, que é um pincha-no-crivo devasso e curioso, penetrou na camarata, bufou, deu um abanão.
O estarim parecia deserto.
Não senhor, alguém dormia meio encurvado, cabeça para fora no seu decúbito, que se agitou molemente.
Volveu a soprar.
Buliu-lhe a veste, deu mesmo um estalido em sua tela semi-rígida e imobilizou-se.
Outro sopro.
Desta vez o pinhão, como um pretinho da Guiné de tanga a esvoaçar, liberou-se da cela e pulou no espaço.
Mas que pára-quedista!
Precipitado tão de alto do pinheiro solitário, balouçou-se um instante e ensaiou um voo oblíquo.
A meio caminho volteou, rodopiou, viu as nuvens ao largo, a terra em baixo e, saracoteando a fralda, desceu em espiral.
Poisou em cima duma fraga, ligeiro como um tira-olhos.
Mas novo pé-de-vento atirou com ele para a banda, quase de escantilhão, e a aleta, tomando-se de imprevisto fôlego, arrebatou-o para mais longe.
Foi cair numa mancheia de terra, removida de fresco pelos roçadores do mato, e ali permaneceu à espera que pancada de água ou calcanhar de homem o mergulhasse no solo, dado que um pombo bravo o não avistasse e engolisse.
Também ali perto, por uma tarde fosca de Outubro, chegou um gaio, voejando de chaparro em chaparro, a grasnar mal-humorado como é próprio da raça.
No saiote desbotado, as duas pinceladas de azul, azul retinto, fulguravam para que se soubesse que um gaio também é gente dos ares.
Trazia no bico uma bolota, um pouco menor que o bolo que o corvo costumava levar à cova de Daniel, mas para ele mais importante.
Dispunha-se a comer a merenda bem amargada, quando deu com os olhos no mariola do vizinho com quem bulhara uma Primavera inteira por causa da gaia, depois sua mulher.
Já esse tal, rancoroso e mau, dava jeitos de querer investir, penas riças, garras desembainhadas, a asa possuída de frenesim.
Que remédio senão preparar-se para o receber condignamente!
E deixou cair a glande.
Esta foi bater na face zenital dum velho toro, saltou de ricochete para o lado, e aninhou-se muito aninhada num monte de folhas secas e argalhos.
Ninguém a via, nem ela via a mais pequena nesga do mundo.
Os dois gaios, depois de trocarem muitos gritos de cólera e darem a sua bicada, mas sem que corresse sangue, despediram.
O mais rela e pundonoroso pulou ao chão a procurar a sua rica bolota.
Procurou, tornou a procurar pincharolando dum lado para o outro e introduzindo por toda a parte, taladas e covinhas, o olho finório e matuto, mas nada descobriu.
Soltou duas ou três vezes a sua voz ralhada a conjurar os deuses daquele desaforo, perdeu a paciência.
E saraivando, batendo a asa, ainda meio atrida da rixa, lá foi para outro carvalhal onde havia que pilhar.
A bolota taluda ficara ali muito quieta, muito bem refastelada em virtude do próprio peso, enterrada que nem pelouro de batalha depois de passarem carros e carretas.
Que fazer senão deitar-se a dormir?!
Dormiu uma hora ou uma vida inteira, quem o sabe?!
Um laparoto veio lá de cascos de rolha, rapou a terra, fez um toural, aliviou-se, e ela ficou por baixo, sufocada sem poder respirar, em plena escuridão.
Estava no fim do fim?
Um belisco, e do seu flanco saiu como uma flecha.
Era de luz ou de vida?
Era uma fonte ou antes um cântico de ave, de água corrente, de vagem a estalar com o sol, dum insecto na sua primeira manhã, música trilada da terra ou das esferas?
Era tudo isto, encarnado no fogo incomburente que lhe lavrava no flanco, verbo que acabou por irradiar do próprio mistério do seu ser.
Do pinhão, que um pé-de-vento arrancou ao dormitório da pinha-mãe, e da bolota, que a ave deixou cair no solo, repetido o acto mil vezes, gerou-se a floresta.
Acudiram os pássaros, os insectos, os roedores de toda a ordem a povoá-la.
No seu solo abrigado e gordo nasceram as ervas, cuja semente bóia nos céus ou espera à tez dos pousios a vez de germinar.
De permeio desabrocharam cardos, que são a flor da amargura, e a abrótea, a diabelha, o esfondílio, flores humildes, por isso mesmo troféus de vitória.
Vieram os lobos, os javalis, os zagais com os gados, a infinita criação rusticana.
Faltava o senhor, meio fidalgo, meio patriarca, à moda do tempo.
Ora, certa manhã de Outono...


- AQUILINO RIBEIRO, A Casa Grande de Romarigães, I.

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13.2.06

Graça Pires (À boca das areias)





À BOCA DAS AREIAS




À boca das areias, ardem quilhas insuspeitas.
Uma tempestade amotina-me o brilho do olhar.
A cidade inunda-se de braços e, dentro de mim,
pernoita um marinheiro comprometido
com marés desmedidas.


Podia esquecer-te para sempre,
não fora a vertigem da tua sombra
a cercar os meus olhos.


Graça Pires



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Safo (Igual aos deuses)




Igual aos deuses me parece
quem a teu lado vai sentar-se,
quem saboreia a tua voz
mais as delícias desse riso


que me derrete o coração
e o faz bater nos meus lábios.
Assim que vejo o teu rosto,
quebra-se logo a minha voz,


seca-me a língua nos dentes,
corre-me um fogo sob a pele,
ficam-me surdos os ouvidos
e os olhos cegos de repente.


Torna-se líquido o meu corpo:
transpiro e tremo ao mesmo tempo.
Vejo-me verde, mais que a erva.
Só por acaso é que não morro.



SAFO
(trad. David M-F)

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12.2.06

Corpo presente (3)





ÚLTIMA VEZ




A última vez?
- Sim, mais cem vezes,
depois da última.
De cada vez…

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6.2.06

Fernão Lopes (Dai aquilo que vosso não é)







Senhor, disse Álvaro Pais, fazei por esta guisa: Dai aquilo que vosso não é, e prometei o que não tendes, e perdoai a quem vos não errou, e ser-vos-á mui grande ajuda para tal negócio em qual sois posto.


- FERNÃO LOPES, Crón. D. João I, cap. XXVII, Livraria Civilização, vol. I, p.56 (com actualização ortográfica).

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Corpo presente (2)





CONSELHO



Poupa-te
Pouco dura
quem muito arde

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5.2.06

Safo (E já se aproxima)





E já se aproxima, para minha alegria,
com sandálias de oiro, a luz do dia…



SAFO
(trad. David M-F)

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Um verso (5)





Um verso de Almada
(sem ser da outra banda):




“A pátria onde Camões morreu de fome
e onde todos enchem a barriga de Camões”.



Almada Negreiros

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Fernão Lopes (Ó que forte cousa)






Ó que forte cousa e mortal guerra de ver, uns Portugueses, quererem destruir os outros! e aqueles que um ventre gerou e uma terra deu criamento, desejarem de se matar de vontade, e esparger o sangue de seus divedos e parentes.



- FERNÃO LOPES, Crón. D. João I, cap. LXVIII, Livraria Civilização, vol. I, p.134 (com actualização ortográfica).

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3.2.06

Nuno Júdice (Écloga)




ÉCLOGA



Sonhei contigo embora nenhum sonho
possa ter habitantes, tu a quem chamo
amor, cada ano pudesse trazer
um pouco mais de convicção a
esta palavra. É verdade o sonho
poderá ter feito com que, nesta
rarefacção de ambos, a tua presença se
impusesse - como se cada gesto
do poema te restituísse um corpo
que sinto ao dizer o teu nome,
confundindo os teus
lábios com o rebordo desta chávena
de café já frio. Então, bebo-o
de um trago o mesmo se pode fazer
ao amor, quando entre mim e ti
se instalou todo este espaço
- terra, água, nuvens, rios e
o lago obscuro do tempo
que o inverno rouba à transparência
das fontes. É isto, porém, que
faz com que a solidão não seja mais
do que um lugar comum saber
que existes, aí, e estar contigo
mesmo que só o silêncio me
responda quando, uma vez mais
te chamo.


Nuno Júdice


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Aquilino Ribeiro (Caía neve, se Deus a dava)






Sofreei o macho.

Caía neve, se Deus a dava, em rala, em grandes flocos, às mancheias, assim à tola, como grão lançado a um campo por semeador arrenegado ou pouco experiente de mão.

Nascera a Lua, mas que Lua!?

Uma cara bochechuda de estalajadeira à espreita, lá do fundo da casa, para o estendedoiro da sua roupa branca.

O mundo mais não era que bragal puríssimo, bragal que, batido às vezes por uma refega de vento, alevantava para deixar a nu pedações de terra e de mato, sujos e negros como os restos do estrume mal cobertos na vessada.

Não era desta neve que doba mansa do céu e parece, bailando, o esflorar das pereiras na Primavera; era a neve ladroa - como para aí lhe chamam - a neve das moscas brancas que voltejam, giram, rodopiam, vêm de trás, de diante, de baixo, dos lados, metem-se por todas as fisgas e grelhas à busca de coiro vivo em que ferrar.

Soprava-lhes o nordeste, o grande bufador, e era vê-las de asas ligeiras, enchendo o céu, a voar, a voar umas atrás das outras, ora muito juntas, ora desenrodilhadas, num vira sem fim.



- AQUILINO RIBEIRO, O Malhadinhas, IX.

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1.2.06

António Ramos Rosa (Não posso adiar o coração)






Não posso adiar o amor


Não posso adiar o amor para outro século
Não posso
Ainda que o grito sufoque na garganta
Ainda que o ódio estale e crepite e arda
Sob montanhas cinzentas
E montanhas cinzentas


Não posso adiar este abraço
Que é uma arma de dois gumes
Amor e ódio


Não posso adiar
Ainda que a noite pese séculos sobre as costas
E a aurora indecisa demore
Não posso adiar para outro século a minha vida
Nem o meu amor
Nem o meu grito de libertação


Não posso adiar o coração



A. RAMOS ROSA
Viagem através duma nebulosa
(1960)


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Corpo presente (1)





CORPO CELESTE






Podias ser um planeta,
posto que habito em ti.
Ou estrela, visto que brilhas
e tens luz própria.
Mas estás de passagem,
como os cometas.

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