31.1.06

Fernão Lopes (Oh! que dorida coisa)





Oh! que dorida coisa era de esguardar, ver de dia e de noite, tantos homens e mulheres vir em manadas para a cidade com os filhos nos braços e pela mão, e os pais com outros aos pescoços, e suas bestas carregadas de alfaias e cousas que trager podiam!

E assim se recolherem de todo o termo para a cidade, todolos moradores de arredor antes que El-Rei de Castela viesse.



- FERNÃO LOPES, Crón. D. João I, cap. LXX, Livraria Civilização, vol. I, p.139 (com actualização ortográfica).

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Mário-Henrique Leiria (Uma nêspera)





Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia


chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a


é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece



Mário-Henrique Leiria


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29.1.06

Rafael Alberti (Canção de amor)





CANCIÓN DE AMOR



Amor, deja que me vaya,
déjame morir, amor.
Tú eres el mar y la playa.
Amor.

Amor, déjame la vida,
no dejes que muera, amor.
Tú eres mi luz escondida.
Amor.

Amor, déjame quererte.
Abre las fuentes, amor.
Mis labios quieren beberte.
Amor.

Amor, está anocheciendo.
Duermen las flores, amor,
y tú estás amaneciendo.
Amor.


Rafael Alberti







Amor, deixa-me ir,
deixa-me morrer, amor.
Tu és o mar e a praia.
Amor.

Amor, deixa-me viver,
não me deixes morrer, amor.
Tu és a minha luz escondida.
Amor.

Amor, deixa-me amar-te.
Abre as fontes, amor.
Quero beber-te com os lábios.
Amor.

Amor, está a anoitecer.
Dormem as flores, amor,
e tu estás a amanhecendo.
Amor.

(Trad. A.M.)



> Rafael Alberti (sítio oficial)


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Coitado do Jorge (6)








ESTE CORPO





Este corpo, que já foi meu aliado,
começa a ser o meu inimigo.



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28.1.06

Eugénio de Andrade (Sê tu a palavra)





SÊ TU A PALAVRA




1.
Sê tu a palavra,
branca rosa brava.


2.
Só o desejo é matinal.


3.
Poupar o coração
é permitir à morte
coroar-se de alegria.


4.
Morre
de ter ousado
na água amar o fogo.


5.
Beber-te a sede e partir
- eu sou de tão longe.


6.
Da chama à espada
o caminho é solitário.


7.
Que me quereis,
se me não dais
o que é tão meu?



Eugénio de Andrade


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Fernão Lopes (Ora esguardai)





Ora esguardai, como se fôsseis presentes, uma tal cidade assim desconfortada e sem nenhuma certa fiúza de seu livramento, como viveriam em desvairados cuidados, quem sofria ondas de tais aflições?

Ó geração que depois veio, povo bem-aventurado, que não soube parte de tantos males, nem foi quinhoeiro de tais padecimentos! os quais a Deus por Sua mercê prouve de cedo abreviar doutra guisa, como acerca ouvireis.


- FERNÃO LOPES, Crón. D. João I, cap. CXLIX, Livraria Civilização, vol. I, p.309 (com actualização ortográfica).

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25.1.06

Alexandre O'Neill (Há palavras que nos beijam)





Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca,
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.
Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto,
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.
De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas, inesperadas
Como a poesia ou o amor.
(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído,
No papel abandonado)
Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.



Alexandre O'Neill


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Fernão Lopes (Qual seria o peito)





Qual seria o peito tão duro de piedade, que não fosse amolentado com a maviosa compaixão, vendo as igrejas cheias de homens e de mulheres com os filhos nos braços, todos bradando a Deus que lhes acorresse e que ajudasse a casa de Portugal?
Decerto nenhum, salvo se fosse não lindo Português; e assim gastaram boa parte da noite, até à manhã, uns em lágrimas e devotas orações, outros em se correger e fazer prestes contra os inimigos.



- FERNÃO LOPES, Crón. D. João I, cap. CXXXII, Livraria Civilização, vol. I, p.259 (com actualização ortográfica).

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Pablo Neruda (Assustar um notário, matar uma freira)





...Todavia, seria delicioso
assustar um notário com um lírio cortado
ou matar uma freira com um soco na orelha.
Seria belo
ir pelas ruas com uma faca verde
e aos gritos até morrer de frio.



Pablo Neruda



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23.1.06

Mario Benedetti (Nuevo canal interoceánico)






NUEVO CANAL INTEROCEÁNICO




Te propongo construir
un nuevo canal
sin esclusas
ni excusas
que comunique por fin
tu mirada
atlántica
con mi natural
pacífico.



Mario Benedetti

 
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21.1.06

Fernão Lopes (Por muito que encobrir queira)





… Por muito que encobrir queira o que ama, não se pode tanto ter, que por alguns sinais e falas e outros demonstradores jeitos, não dê a entender aquele ardente desejo que em sua vontade continuadamente mora.




- FERNÃO LOPES, Cron. D. João I, cap. III, Livraria Civilização, vol. I, p.7 (com actualização ortográfica).


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19.1.06

Ruy Belo (A mão no arado)





A MÃO NO ARADO




Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará


Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua


É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solidário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã
Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tudo isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente


Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente



RUY BELO
O problema da habitação
(1962)

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Jaime Sabines (Como pájaros perdidos)





COMO PÁJAROS PERDIDOS – XIX




Como ahora no hay maestros ni alumnos,
el alumno preguntó a la pared:
¿qué es la sabiduría?
Y la pared se hizo transparente.



JAIME SABINES
Maltiempo
(1972)

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18.1.06

Mário Cesariny (You are welcome to Elsinore)





YOU ARE WELCOME TO ELSINORE




Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício


Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição


Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor


E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita


Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar



MÁRIO CESARINY
Pena Capital

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Coitado do Jorge (5)





MILÉSIMA





- O quê, foi a milésima?
   E se passássemos à milésima primeira?


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Eugénio de Andrade (Frente a frente)




FRENTE A FRENTE




Nada podeis contra o amor.
Contra a cor da folhagem,
contra a carícia da espuma,
contra a luz, nada podeis.


Podeis dar-nos a morte,
a mais vil, isso podeis
- e é tão pouco.



EUGÉNIO DE ANDRADE
Até Amanhã


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Um verso (4)






Um verso de Nemésio
(se bem me lembro, Vitorino):




“Com medo de o perder, nomeio o mundo”.

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17.1.06

António Ramos Rosa (Dou-te um nome de água)





Dou-te um nome de água
para que cresças no silêncio.


Invento a alegria
da terra que habito
porque nela moro.


Invento do meu nada
esta pergunta.
(Nesta hora, aqui.)


Descubro esse contrário
que em si mesmo se abre:
ou alegria ou morte.


Silêncio e sol
– verdade,
respiração apenas.


Amor, eu sei que vives
num breve país.


Os olhos imagino
e o beijo na cintura,
ó tão delgada.


Se é milagre existires,
teus pés nas minhas palmas.


Ó maravilha, existo
no mundo dos teus olhos.


Ó vida perfumada
cantando devagar.


Enleio-me na clara
dança do teu andar.


Por uma água tão pura
vale a pena viver.


Um teu joelho diz-me
a indizível paz.




A. Ramos Rosa


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13.1.06

Russell Edson (Outono)




OUTONO



Uma vez um homem encontrou duas folhas e entrou em casa
segurando-as com os braços esticados dizendo aos pais que era uma árvore.


Ao que eles disseram então vai para o pátio e não cresças na sala
pois as tuas raízes podem estragar a carpete.


Ele disse eu estava a brincar não sou uma árvore e deixou cair as
folhas.


Mas os pais disseram olha é outono.




RUSSELL EDSON (1935)
O Túnel
(trad. José Alberto Oliveira)


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12.1.06

Adélia Prado (Neurolinguística)




NEUROLINGÜÍSTICA



Quando ele me disse
ô linda,
pareces uma rainha,
fui ao cúmice do ápice
mas segurei meu desmaio.
Aos sessenta anos de idade,
vinte de casta viuvez,
quero estar bem acordada,
caso ele fale outra vez.



Adélia Prado



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Um verso (3)




Um verso de Ruy Belo
(apanhado no ar):




“Como quem entra por engano morte dentro”.

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11.1.06

Coitado do Jorge (4)





PODE SER DIÁLOGO




Há quanto tempo!
Acho que na próxima não vou apenas comer-lhe a carne,
vou também chupar-lhe os ossos…




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10.1.06

José Agostinho Baptista (E as casas são brancas)




E AS CASAS SÃO BRANCAS
LOUCAMENTE BRANCAS



lembro-me das horas sobre o mar
do surdo rumor do casco dos navios
da tua boca colada à paixão dos mapas primitivos.


entretanto o teu corpo corre devagar para o litoral
e as casas por detrás dos cabelos são brancas
loucamente brancas.


no princípio eram as paredes
e havia o teu riso altíssimo encostado aos dias que
morriam nas paredes.


quem destruiu tudo isso?
quem matou as aves nos ramos da tua loucura?


oiço este rio que corre longe de mim longe de tudo
este corcel galopando pelos países


- quem canta esta noite?


entretanto tu atravessas a minha poesia com espadas de
neve
e falas de casas como quem fala do surdo rumor do casco
dos navios -


quem canta esta noite?


e o teu corpo vai correndo devagar para o litoral
e as casas por detrás dos teus cabelos são brancas
loucamente brancas.



José Agostinho Baptista


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6.1.06

Coitado do Jorge (3)





AUREA MEDIOCRITAS




Queca mensal,
correr no Choupal,
morrer pelo Natal…



- Porquê morrer pelo Natal?
pergunta a Ivone.


- Ora, para rimar...


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3.1.06

Pedro Salinas (Serás, amor)




¿Serás, amor
un largo adiós que no se acaba?
Vivir, desde el principio, es separarse.
En el primer encuentro
con la luz, con los labios,
el corazón percibe la congoja
de tener que estar ciego y sólo un día.
Amor es el retraso milagroso
de su término mismo:
es prolongar el hecho mágico
de que uno y uno sean dos, en contra
de la primer condena de la vida.
Con los besos,
con la pena y el pecho se conquistan,
en afanosas lides, entre gozos
parecidos a juegos,
días, tierras, espacios fabulosos,
a la gran disyunción que está esperando,
hermana de la muerte o muerte misma.
Cada beso perfecto aparta el tiempo,
le echa hacia atrás, ensancha el mundo breve
donde puede besarse todavía.
Ni en el llegar, ni en el hallazgo
tiene el amor su cima:
es en la resistencia a separarse
en donde se le siente,
desnudo, altísimo, temblando.
Y la separación no es el momento
cuando brazos, o voces,
se despiden con señas materiales.
Es de antes, de después.
Si se estrechan las manos, si se abraza,
nunca es para apartarse,
es porque el alma ciegamente
siente
que la forma posible de estar juntos
es una despedida larga, clara
y que lo más seguro es el adiós.



PEDRO SALINAS
Razón de amor
(1936)






Serás, amor,
um longo adeus que não se acaba?
Desde o começo, viver é separar-se.
No primeiro encontro com a luz, com os lábios,
o coração percebe a angústia
de um dia estar cego e só.
Amor é o atraso milagroso
do seu próprio termo:
é prolongar o facto mágico,
de que um mais um sejam dois, contra
a primeira condenação da vida.
Com beijos,
com a pena e o peito se conquistam,
em afanosas lides, entre gozos
parecidos com brincadeiras,
dias, terras, espaços fabulosos,
isto à grande separação que nos espera,
irmã da morte ou a morte mesma.
Cada beijo perfeito afasta o tempo,
atira-o para trás, alarga o mundo breve
em que é permitido ainda beijar.
Nem no chegar, nem no encontro
tem o amor o seu cume:
ele sente-se é na resistência a separar-se,
desnudo, altíssimo, tremente.
E a separação não é o momento
em que braços, ou vozes,
se despedem com sinais materiais.
É de antes, de depois.
Se se estreitam as mãos, e se abraça,
não é nunca para apartar-se,
é porque cegamente a alma sente
que a forma possível de estar juntos
é uma despedida longa, clara
e que o mais seguro é o adeus.


(Trad. A.M.)

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1.1.06

Um verso (2)








Um verso de Assis
(Pacheco há só um, o Fernando e mais nenhum):




“Enquanto, aplicado, vou morrendo nos lábios da bem amada”.



Outro?
“Esta é a ditosa amada, minha pátria”.

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