30.11.06

Fernando Assis Pacheco (Peso de Outono)






PESO DE OUTONO




Eu vi o Outono desprender suas folhas,
cair no regaço de mulheres muito loucas.
Cem duzentas pessoas num café cheio de fumo
na cidade de Heidelberg pronta para a neve
saboreavam tepidamente a sua ignorância.


Eu vi as amantes ensandecerem
com esse peso de Outono. Perderem as forças
com o Outono masculino e sangrento.
Os gritos a meio da noite
das amantes a meio da loucura voavam
como facas para o meu peito.


Alguns poetas li-os melhor no Outono,
certos amores só poderia tê-los,
como tive, nos dias ébrios da vindima.


Fernando Assis Pacheco

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25.11.06

Um verso (24)






Um verso de Marguerite Yourcenar
(que a sabia toda):




“Somos sempre indulgentes com aqueles que vamos deixar”.




[Canal-de-poesia]

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Jaime Sabines (Qué costumbre...)





¡Qué costumbre tan salvaje esta de enterrar a los muertos!, ¡de matarlos, de aniquilarlos, de borrarlos de la tierra! Es tratarlos alevosamente, es negarles la posibilidad de revivir.


Yo siempre estoy esperando a que los muertos se levanten, que rompan el ataúd y digan alegremente: ¿por qué lloras?


Por eso me sobrecoge el entierro. Aseguran las tapas de la cajan, la introducen, le ponen lajas encima, y luego tierra, tras, tras, tras, paletada tras paletada, terrones, polvo, piedras, apisonando, amacizando, ahí te quedas, de aquí ya no sales.


Me dan risa, luego, las coronas, las flores, el llanto, los besos derramados. Es una burla: ¿para qué lo enterraron?, ¿por qué no lo dejaron fuera hasta secarse, hasta que nos hablaran sus huesos de su muerte? ¿O por qué no quemarlo, o darlo a los animales, o tirarlos a un río?


Había de tener una casa de reposo para los muertos, ventilada, limpia, con música y con agua corriente. Lo menos dos o tres, cada día, se levantarían a vivir.



JAIME SABINES
Yuria
(1967)






Que costume mais selvagem este de enterrar os mortos! De os matar, de os aniquilar, de apagá-los da terra! É tratá-los com aleive, é negar-lhes a possibilidade de reviverem.


Eu estou sempre à espera que os mortos se levantem, que rompam o ataúde e digam alegremente: porque é que choras?


Por isso me espanta o enterro. Aferrolham o caixão, enfiam-no na terra, põem-lhe pedras por cima e depois terra, trás, trás, trás, pázada sobre pázada, terrões, pó, pedras, calcando, amaciando, fica-te para aí, daqui é que já não sais.


Dá-me o riso, depois, com as coroas, as flores, o pranto, os beijos derramados. É uma burla: Para que o enterraram? Porque não o deixaram de fora até secar, até os ossos nos falarem da sua morte? Ou porque não queimá-lo, ou dá-lo aos animais, ou atirá-lo ao rio?


Havia de haver uma casa de repouso para os mortos, ventilada, limpa, com música e água corrente. Pelo menos dois ou três, em cada dia, erguer-se-iam para viver.


(Trad. A.M.)

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24.11.06

Cristóvão de Aguiar (Não me apeteceu cear nesse dia)






A sua presença explodida de vida num lugar de ausência fazia-me crescer uma onda de calor que marinhava da ponta dos pés à raiz dos cabelos, num arrepio de não sei quê sublinhado pela demora líquida e conivente do seu verde olhar pousado no peitoril do meu.

Só à noite, à fogueira da imaginação, é que sabia recapitular os pormenores do diálogo que não existira e ver com nitidez os contornos do sorriso apenas adivinhado mas raso de promessas e afectos futuros se reinventado no conchego da memória.

Num domingo, à hora das Trindades da tarde, dei-lhe tremendo o primeiro beijo.

Subia das terras um cheiro bom a trigo maduro.

No céu, aguardavam os carneirinhos rosados das nuvens a sua vez de beber no enorme gamelão do mar.

Mesmo rente à linha que cose o horizonte.

Espantado, corri para casa.

Estendi-me sobre a cama de ferro.

E foi aí que o sabor daquele beijo medroso se me tornou real.

Abriu-se numa corola de desejo.

E foi pouco e pouco alastrando-se por sobre a terra púbere do meu corpo.

Para pasmo de minha Mãe, que me lia de cima a baixo, não me apeteceu cear naquele dia.



- CRISTÓVÃO DE AGUIAR, O fruto e o sonho, 1.ª parte, cap. II, fecho, da trilogia Raiz Comovida.

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22.11.06

Coitado do Jorge (28)






MALANDRAGEM




Faz currículo, malandro…
Para mais tarde recordares.
Se tiveres tempo…


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Alexandre O'Neill (Portugal)





País - 1 (Jorge de Sena)


País -2 (A. O'Neill)


País - 3 (Jorge de Sena)


País - 4 (A. O'Neill)




PORTUGAL



Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!


Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há "papo-de-anjo" que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.


Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...


ALEXANDRE O’NEILL
Feira Cabisbaixa

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Mario Benedetti (Milonga de los perdones)









(Visita a Mario B., en su casa, en Montevideo...
graças a Milka)



MILONGA DE LOS PERDONES



Milonga de los perdones
y de los perdonavidas
aunque incluya a los que a veces
nos dejaron con heridas

milonga de no quedarse
abrazado a los rencores
aunque en uno que otro caso
se puede odiar sin pudores

milonga reloj de arena
que organiza tu memoria
hasta que un día te marque
la vejez obligatoria

milonga de un escondrijo
donde nadie te delate
y puedas cantar la nueva
milonga del disparate

milonguera que te ayude
a salir del laberinto
con un pufiado de suerte
y un litro de vino tinto

la milonga disponible
puede servirnos de guía
si le agregamos paciencia
y algo de melancolia

milonga de la tristeza
viene con pálidos ecos
hay miradas como llanto
pero hay ojos que están secos

mujer que alguien robaría
con ayuda o sin ayuda
el que la cruza en la calle
con los ojos la desnuda

milonga del millonario
no importa lo que nos cobres
yo prefiero conformarme
con el perdón de los pobres



Mario Benedetti



Antes, aqui: Desde los afectos (Sinopse) / Nuevo canal interoceánico / Coração, couraça
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17.11.06

Carlos Drummond de Andrade (No meio do caminho)






(Na terra dele também...
Rio de Janeiro / E no escritório)





NO MEIO DO CAMINHO




No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra



Carlos Drummond de Andrade

14.11.06

António Botto (Anda, vem)





Anda vem..., porque te negas,
Carne morena, toda perfume?
Porque te calas,
Porque esmoreces,
Boca vermelha, rosa de lume?


Se a luz do dia
Te cobre de pejo,
Esperemos a noite presos num beijo.


Dá-me o infinito gozo
De contigo adormecer
Devagarinho, sentindo
O aroma e o calor
Da tua carne, meu amor!


E ouve, mancebo alado:
Entrega-te, sê contente!
Nem todo o prazer
Tem vileza ou tem pecado!


Anda, vem!... Dá-me o teu corpo
Em troca dos meus desejos...
Tenho saudades da vida!
Tenho sede dos teus beijos!



António Botto

Mário Quintana (Os poemas)





(Na terra dele, também...
Porto Alegre)






OS POEMAS






Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...



Mário Quintana


[Jornal de Poesia]

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12.11.06

Um verso (23)






Um verso de Delmira
(Agustini. Na terra dela...):





"Lembras-te da glória das minhas asas?"

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Mário Cesariny (Poema)






POEMA





Tu estás em mim como eu estive no berço
como a árvore sob a crosta
como o navio no fundo do mar



Mário Cesariny

8.11.06

Coitado do Jorge (27)












(Sábio, esse Jaime...)



Para saber de amor, para aprenderle,
haber estado solo es necesario...



Jaime Gil de Biedma


Fonte: Corte-na-Aldeia

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Sophia de Mello Breyner Andresen (A conquista de Cacela)






A CONQUISTA DE CACELA




As praças fortes foram conquistadas
por seu poder e foram sitiadas
as cidades do mar pela riqueza

Porém Cacela
foi desejada só pela beleza



Sophia de Mello Breyner Andresen

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3.11.06

Um verso (22)




Um verso de René Char(ou três?):




“Eu amava-te,
mudando em tudo,
fiel a ti”.




[Canal de poesia]

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Jorge de Sena (Portugal)





País - 1 (Jorge de Sena)


País - 2 (A. O'Neill)


País - 3 (Jorge de Sena)




PORTUGAL




Esta é a ditosa pátria minha amada.
Não.Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
a pouca sorte de nascido nela.


Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.


Torpe dejecto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, e de vileza,
de mesquinhez, de fátua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol calada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a merda o seu anonimato;
terra-museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esses sentimentos de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:
eu te pertenço. És cabra, és badalhoca,
és mais que cachorra pelo cio,
és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço mas seres minha, não.


Jorge de Sena

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